domingo, 26 de outubro de 2008

A UMIDADE DILATA O CÉREBRO


Acabei de ler uma daquelas frases geniais, que nos fazem fechar as páginas do livro, só pra meditar sobre a safada. Quando indagado sobre o porque de estar com um ar tão “meditabundo” o menino respondeu: “Não sei, talvez a umidade, que dilata o cérebro”. Percebem a genialidade disso ? Em uma fração de segundos já me veio um punhado de pensamentos efervescentes fazendo conexões meio descabidas e perdidas, mas que logo foram cabendo e se achando.

Pra quem não sabe, moro em Pelotas, que além de ser conhecida no resto do Brasil por ser o lar de muitos e muitos homossexuais (fato que imagino estar equivocado, mas que no final das contas não importa), é famosa (entre poucos) por mais duas coisas: os doces de excelente qualidade, e a terrível umidade do ar. Como já devem ter percebido, o fato importante para este texto não são os doces. Pelotas não é apenas uma cidade muito úmida, é a segunda mais úmida do mundo, perdendo apenas para Londres com sua “Bruma Londrina” (impossível não ver a silhueta negra de Jack, O estripador por entre os vapores); por algum motivo meio besta, sempre me orgulhei de nossa colocação no pódio das cidades úmidas... como posso explicar ? A umidade sempre me pareceu algo romântico, teatral... vocês podem dizer que isso faz parte da fantasia de terceiro mundo dos gaúchos, que adoram fingir que são europeus... mas minha visão é de outro ponto.

O Rio Grande do Sul sempre me pareceu um estado de histórias, povoado por pessoas que adoram contar histórias, e, gaúchos ou não, os contadores de histórias sempre foram meu tipo favorito de pessoas. Agora noto que talvez o segredo dessa propensão dos sulistas pela arte de contar histórias, tenha algum laço estreito com a umidade.

Porque, vejam, foi como disse o menino: “ umidade, que dilata o cérebro”; nossos cérebros são mais expansivos, mais etéreos, com espaço de sobra para as histórias se fixarem, ou brotarem. Me compreendem ? Um cérebro “dilatado” é terreno mais que fértil para a invenção. Que outra explicações teria-mos para tantos fenômenos fantásticos, quase patológicos de “imaginação inventiva aguda”, como, Moacyr Scliar, Érico Veríssimo, Caio Fernando Abreu, Dalton Trevisan e os mais que geniais Kraunus Sang e o Maestro Pletskaya ?

Minha intenção não é ser regionalista, apenas quero falar sobre a região onde vivo, por mais “sinônimoso” que seja.

Já a dias vinha sendo assombrado com uma frase que li no texto de um talentoso quadrinista conterrâneo (chamado Odyr), que citando outro de nossos conterrâneos escreveu: “Voltasse muito a Pelotas”, fiquei mastigando esta frase de terceira mão por horas. E constatei que assim é! Tenho planos de sair daqui, ir pra outra cidade, mas já planejo a volta, enquanto ouço histórias de tantos outros que anseiam voltar pra nossa anêmica Princesa do Sul.

Coincidentemente ou não, a primeira (e mais genial) obra que li do Odyr, foi um livreto com seus rascunhos e conceitos sobre um projeto que nunca saiu das pranchetas, ao menos não da forma que devia. Era uma revistas sem grampos, preta e branca intitulada “Cidade da Névoa”, onde o leitor era era apresentado a uma cidade fora do tempo e do espaço, onde gárgulas confundiam os turistas pelas vielas na noite, e balões e zepelins coloriam o céu, extinguindo o trânsito cinza e enervante dos automóveis, um lugar onde personagens sem rosto nem passado entrechocavam-se em histórias repletas de simbolismo e ao mesmo tempo, cheias de simplicidade. Não vou me estender na descrição da cidade, basta dizer que ler as poucas páginas daquela revista bastou para me tornar um admirador inconseqüente não só da Cidade, mas também de seu criador.

E nos deparamos mais uma vez com a névoa ligada intimamente com a imaginação.

Falei antes dos contadores de histórias, um grupo de pessoas no qual me incluo, e só agora me dei por conta de que uns de meus métodos favoritos para buscar inspiração, é fumar no páteo dos fundos da minha casa. Sempre pensei que fosse a nicotina e o silêncio que ajudassem meu cérebro a funcionar melhor, mas agora me descubro enganado, era a umidade, o “sereno” da madrugada que punham meus neurônios no lugar.

Por fim, como toda vez em que começo a escrever/falar sem alguém para por uma de força na minha boca, acabo sem saber oque dizer... A única coisa que sei é que me sinto como dono de um segredo fantástico: a umidade dilata o cérebro!!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Changes

Pre-scriptum: não fiquei particularmente satisfeito com o resultado deste conto. Queria mudar (ou prolongar) o final. Mas a inspiração e o tempo tão faltando. Então fiquem com a versão 1.0, qualquer dia eu posto o director's cut.

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Saulo acordou e sentiu um cheiro bom. Um cheiro feminino agradável. Não se lembrava de ter se dado bem na noite anterior. Na verdade pelo que se lembrava, tinha ficado em casa, bebendo sozinho e jogando video-game. Bom, devia estar enganado. Abriu os olhos.
O quarto era extremamente bem arrumado, mas nenhum que já havia visto antes. Levantou-se, fazendo um grande esforço para lembrar o que havia acontecido ontem.
Foi ao banheiro, olhou no espelho, mas foi um estranho o olhou de volta. Um homem de cerca de 35 anos, porte atlético, uma clave de sol tatuada no peito. OK, Saulo não era mais ele mesmo, e se perguntou se os anos de adolescência, banhados à LSD o haviam deixado maluco.
Resolveu entrar no jogo e ver no que isso ia dar. Escovou os dentes e desceu as escadas da casa. Passou por uma sala, e sentiu um cheiro bom na cozinha que ficava ao lado. Uma mulher maravilhosa estava fazendo café. Ao ouvir Saulo, virou-se, foi até ele, beijou-o e disse "Bom dia Ninho, dá pra você acordar sua filha? Ela não quer levantar de jeito nenhum".
A cada minuto, Saulo ficava mais confuso. Não disse nada e voltou a subir as escadas. Olhou por uma porta: era um escritório. Na segunda porta, uma garotinha de 5 anos dormia abraçando um gato de pelúcia. Saulo foi até a garota, que abriu um olho, e ao vê-lo abriu um sorriso, e disse "Estava sonhando com você, papai!"
Saulo deu um beijo na garota, disse para ela se levantar e descer, pois mamãe a esperava.
Voltou até o quarto que acordara e viu, sobre uma cadeira, um uniforme de policial. Na plaquinha de identificação lia-se “Of. Antônio M.”. Vestiu-se, desceu, comentou sobre o tempo com a mulher, bebeu seu café e foi trabalhar. Saiu com o Palio que estava na garagem e foi até a Delegacia do bairro, torcendo pra estar indo pro lugar certo.
Chegou ao 32º DP sem saber muito o que fazer. Entrou e deu de cara com uma mulher idosa numa mesa, que sorriu para ele, entregou-lhe uma chave e disse "Bom dia, Toninho! Hoje sua ronda é no São João, OK?". Na chave, o número 102 estava gravado. Saulo foi até o pátio, achou a viatura 102, ligou-a e dirigiu-se ao bairro São João. Que por acaso era o bairro que ele costumava morar.
Resolveu passar em frente seu (antigo?) lar, e sentiu uma sensação estranha ao ver sua figura andando a esmo na rua, olhando para todos os lados, o desespero estampado no rosto. Saulo já tinha visto esse tipo de filme, e tinha certeza de que o oficial Antônio M. agora controlava o que costumava ser seu corpo. Antônio M. parecia muito mais confuso do que ele, e Saulo entendeu o motivo. Até o presente momento, não havia conquistado nada em sua vida, vivia ainda às custas dos pais, não conseguia emprego, morava nesse muquifo no centro, vivendo um dia após o outro sem perspectiva de mudança. Antônio M., por outro lado, parecia viver uma vida segura, fruto de muito esforço e conquistas difíceis. Constituiu uma família, tinha casa e um bom emprego, e de repente acordou vivendo a vida de outra pessoa, de um bostinha qualquer.
Saulo sentiu pena da situação de Antônio M., sentia-se um pouco culpado por estar aceitando essa troca tão naturalmente. Queria fazer algo quanto à isso, mas instantes depois, resolveu que não faria mal viver apenas um dia uma vida segura e feliz.

Após o trabalho, Saulo negou o convite dos amigos de ir ao Matsubasa tomar algo, e foi direto pra sua casa. E percebeu que já estava chamando aquela casa de “sua”.

Passou uma noite agradável com sua família, viu um filme com a filha, e deitou-se cedo com sua esposa. E então teve um surpresa deveras agradável. Descobriu ela, além de maravilhosa, era ótima na cama, a melhor que já teve. Passou uma madrugada muito prazerosa, e depois dormiu profundamente.

Na manhã seguinte, Saulo acordou pensando em como iria conseguir reverter tudo isso. Lembrou-se da imagem dele mesmo vagando confuso pela rua. Iria hoje mesmo falar com o Antônio M. e juntos descobririam um jeito de acertar as coisas.
Lembrou-se do emprego, da casa burguesa, da filha, da segurança. Foda-se, ele nunca quis viver assim. E aí virou-se na cama e viu “sua” esposa dormindo, o belo corpo iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã.
E então mudou de idéia e decidiu que não, não faria porra nenhuma para reverter a situação.
O ser humano é desprezível.