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Saulo acordou e sentiu um cheiro bom. Um cheiro feminino agradável. Não se lembrava de ter se dado bem na noite anterior. Na verdade pelo que se lembrava, tinha ficado em casa, bebendo sozinho e jogando video-game. Bom, devia estar enganado. Abriu os olhos.
O quarto era extremamente bem arrumado, mas nenhum que já havia visto antes. Levantou-se, fazendo um grande esforço para lembrar o que havia acontecido ontem.
Foi ao banheiro, olhou no espelho, mas foi um estranho o olhou de volta. Um homem de cerca de 35 anos, porte atlético, uma clave de sol tatuada no peito. OK, Saulo não era mais ele mesmo, e se perguntou se os anos de adolescência, banhados à LSD o haviam deixado maluco.
Resolveu entrar no jogo e ver no que isso ia dar. Escovou os dentes e desceu as escadas da casa. Passou por uma sala, e sentiu um cheiro bom na cozinha que ficava ao lado. Uma mulher maravilhosa estava fazendo café. Ao ouvir Saulo, virou-se, foi até ele, beijou-o e disse "Bom dia Ninho, dá pra você acordar sua filha? Ela não quer levantar de jeito nenhum".
A cada minuto, Saulo ficava mais confuso. Não disse nada e voltou a subir as escadas. Olhou por uma porta: era um escritório. Na segunda porta, uma garotinha de 5 anos dormia abraçando um gato de pelúcia. Saulo foi até a garota, que abriu um olho, e ao vê-lo abriu um sorriso, e disse "Estava sonhando com você, papai!"
Saulo deu um beijo na garota, disse para ela se levantar e descer, pois mamãe a esperava.
Voltou até o quarto que acordara e viu, sobre uma cadeira, um uniforme de policial. Na plaquinha de identificação lia-se “Of. Antônio M.”. Vestiu-se, desceu, comentou sobre o tempo com a mulher, bebeu seu café e foi trabalhar. Saiu com o Palio que estava na garagem e foi até a Delegacia do bairro, torcendo pra estar indo pro lugar certo.
Chegou ao 32º DP sem saber muito o que fazer. Entrou e deu de cara com uma mulher idosa numa mesa, que sorriu para ele, entregou-lhe uma chave e disse "Bom dia, Toninho! Hoje sua ronda é no São João, OK?". Na chave, o número 102 estava gravado. Saulo foi até o pátio, achou a viatura 102, ligou-a e dirigiu-se ao bairro São João. Que por acaso era o bairro que ele costumava morar.
Resolveu passar em frente seu (antigo?) lar, e sentiu uma sensação estranha ao ver sua figura andando a esmo na rua, olhando para todos os lados, o desespero estampado no rosto. Saulo já tinha visto esse tipo de filme, e tinha certeza de que o oficial Antônio M. agora controlava o que costumava ser seu corpo. Antônio M. parecia muito mais confuso do que ele, e Saulo entendeu o motivo. Até o presente momento, não havia conquistado nada em sua vida, vivia ainda às custas dos pais, não conseguia emprego, morava nesse muquifo no centro, vivendo um dia após o outro sem perspectiva de mudança. Antônio M., por outro lado, parecia viver uma vida segura, fruto de muito esforço e conquistas difíceis. Constituiu uma família, tinha casa e um bom emprego, e de repente acordou vivendo a vida de outra pessoa, de um bostinha qualquer.
Saulo sentiu pena da situação de Antônio M., sentia-se um pouco culpado por estar aceitando essa troca tão naturalmente. Queria fazer algo quanto à isso, mas instantes depois, resolveu que não faria mal viver apenas um dia uma vida segura e feliz.
Após o trabalho, Saulo negou o convite dos amigos de ir ao Matsubasa tomar algo, e foi direto pra sua casa. E percebeu que já estava chamando aquela casa de “sua”.
Passou uma noite agradável com sua família, viu um filme com a filha, e deitou-se cedo com sua esposa. E então teve um surpresa deveras agradável. Descobriu ela, além de maravilhosa, era ótima na cama, a melhor que já teve. Passou uma madrugada muito prazerosa, e depois dormiu profundamente.
Na manhã seguinte, Saulo acordou pensando em como iria conseguir reverter tudo isso. Lembrou-se da imagem dele mesmo vagando confuso pela rua. Iria hoje mesmo falar com o Antônio M. e juntos descobririam um jeito de acertar as coisas.
Lembrou-se do emprego, da casa burguesa, da filha, da segurança. Foda-se, ele nunca quis viver assim. E aí virou-se na cama e viu “sua” esposa dormindo, o belo corpo iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã.
E então mudou de idéia e decidiu que não, não faria porra nenhuma para reverter a situação.
O ser humano é desprezível.
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